Retalhos, a autobiografia de Craig Thompson em quadrinhos

retalhosRetalhos (Blankets, no original) de Craig Thompson é uma história em quadrinhos sobre a infância e adolescência do próprio autor, mostrando um vida difícil em Wisconsin, no centro dos Estados Unidos. Além de ser atormentado em casa por seu pai rígido e sua mãe religiosa demais, na escola Craig apanha e é descriminado por ser diferente dos caras atletas de mullets. A  relação difícil com a religião e com seu próprio eu marca toda a história, em 592 páginas. As lembranças do autor também retomam a relação ambígua com seu irmão mais novo, Phil, que ao mesmo tempo não o deixava dormir enquanto os dois tinham que dividir a mesma cama, mas foi um parceiro nas horas de brincar.  A ambiguidade de sentimentos se encontra na culpa que Craig carrega ao ‘abandonar’ o irmão em diversas situações ameaçadoras, como quando Phil é trancado em um quartinho cheio de monstros para dormir sozinho ou quando relembra dos abusos que ambos sofriam pelo Babysitter. É interessante notar também o quanto as brincadeiras entre os dois envolviam imaginação e o quanto essa cumplicidade se refletia no desenvolvimento da habilidade de ambos em desenhar.

Apesar do começo deprimente, onde Craig é isolado e reprimido pela família, escola e pela igreja local, Retalhos é um conto sensível sobre seu primeiro amor, Raina, e sobre achar seu caminho para a vida adulta. Na adolescência, Craig conhece a garota em um acampamento religioso, junto com outros dois excluídos, um punk e um hippie.  Eles passam a ficar  juntos, fugindo para a floresta e matando as missas. Há uma intensa troca de olhares entre os dois. Craig enxerga nela a perfeição e tem vontade de tocá-la em um momento em que ela dorme ao seu lado, porém em sua aprendizagem calcada em proibições religiosas, aquilo seria pecado. Por isso, ele resolve apenas acariciar seus cabelos. Nisso percebe-se que a admiração dele por Raina é quase que imediata, ao mesmo tempo tão simples e sem açúcar que o leitor torce para que naquele momento mesmo ele largue dessa ‘frescura’ de religião e fique com ela.

Aumentando as expectativas, depois do acampamento Craig e Raina trocam correspondências. Escrevem cartas, mandam flores, ele envia alguns desenhos para ela e ela manda-lhe algumas fitas com músicas. São flertes a distância. Após um tempo, Craig recebe um telefonema dela. Raina passa por um duro momento, pois seus pais vão se separar e ela se sente muito sozinha. Por isso, convida Craig para passar 2 semanas na casa dela. Para convencer a mãe, Craig enfatiza que a família de Raina é cristã e que não vai dormir no mesmo quarto que ela, já que ela mora com os pais e eles possuem um quarto de hóspedes. Já para receber o aval do pai, Craig precisa voltar a assistir todas as aulas, pois ele matava muitas, tirar notas boas, abandonar seu vegetarianismo e voltar a comer carne. Realizando as duas primeiras mas trapaceando na última promessa, o rapaz consegue ir ver a garota.

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Como nos filmes 500 days of Summer ou Annie Hall, Retalhos também é um conto bonito sobre um amor passageiro. A escrita e os desenhos são sensíveis sem ser piegas e dão um toque sensual e melancólico para os momentos entre Craig e Raina. Os dois são ao mesmo tempo profundamente íntimos e distantes. “Tudo degenera”, explica Raina enquanto os dois voltam de uma festa. A popularidade e sociabilidade de Raina além de tudo incomodam Craig, ao notar como um ponto que os diferencia. Porém, a complexidade do contexto familiar de Raina os aproxima, e Craig se encanta com a paciência e delicadeza de Raina ao lidar com a comunicação indireta dos pais, a irmã mais velha e o cunhado chato e o casal de irmãos que possuem síndrome de down. Ambos desejam ficar juntos para além daquelas duas semanas, mas percebem que isso não será possível na realidade.

A religião permeia a relação entre os dois, assim como as dúvidas de Craig. Em um momento, ele agradece a Deus por poder dormir junto com uma criatura tão perfeita, mas se pergunta se não era pra ele se sentir culpado. Ou seja, a culpa derivada de sua ‘educação’ religiosa o persegue. Também não fica a vontade com seu próprio corpo e se sente sujo temporariamente por desejar sexualmente Raina. Porém, nesse tempo paradisíaco em que Craig passa com Raina ele se (re)descobre e consegue dar os primeiros passos para se sentir livre dessa culpa desejando-a, amando-a e verbalizando isso.

O título da história faz referência à colcha de retalhos que Raina fez e deu de presente para Craig durante sua visita. Ele se impressiona com o tempo dedicado por ela e a colcha se torna o maior símbolo do afeto entre os dois. A única coisa que Craig não consegue deixar para trás, dentre as lembranças e marcas deixadas por Raina, é essa colcha.

“Como é bom deixar marcas na superfície branca. Fazer um mapa dos meus passos. Mesmo que seja temporário”, é a ultima narração das páginas finais enquanto ele anda na neve, podendo ser uma metáfora para sua curta relação com Raina.

Mas não se engane. Como escrevi antes, Retalhos não é só romance. É uma narrativa complexa sobre crescer, questionar a religião, o papel da fé para cada pessoa, a responsabilidade de ser o irmão mais velho e sobre conviver com seu passado e seguir a vida. Craig cresce aos olhos do leitor, mas a narrativa permite trazer lembranças de sua infância e adolescência a todo momento.

blanketsO autor acerta em cheio ao tentar passar suas vivências, e especificamente esses conteúdo. O final não é feliz nem triste, é humano. Craig não é herói nem anti-herói. Ele só um cara normal em um mundo complexo com uma família complicada e com uma garota por quem se apaixona. Afinal, quem nunca?

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3 respostas para Retalhos, a autobiografia de Craig Thompson em quadrinhos

  1. Pingback: Retalhos, história em quadrinhos autobiográfica de Craig Thompson | Resenhar Experientia

  2. Gabriele disse:

    Terminei agora esse livro, li em um dia e estou tão encantada… Não há palavras para descrever, simplesmente FANTÁSTICO!

    • Obrigado pelo comentário Gabriele, essa HQ é uma das minhas preferidas. É cheia de sensibilidade! Indico Habbib do mesmo autor e Azul é a cor mais quente, a HQ que originou o filme. Apareça mais vezes na sessão de comentários!

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