Mark Twain, Huck Finn e racismo

Romance considerado racista pelo uso da palavra nigger  (preto ou crioulo, em português), tido como um dos mais polêmicos para abordar em sala de aula pelos colégios americanos, As aventuras de Huckleberry Finn é o livro que Ernest Hemingway considerou como o marco inicial da literatura norte-americana moderna. Foi publicado em 1885, após outro clássico de Twain, Tom Sawyer.

O romance foi censurado e banido das listas de leitura escolares, como em Renton High School. A família de um dos estudantes foi contra o livro, pois consideram que o mesmo ofende a religiosidade, os valores familiares, a moral ou a sensibilidade política.

Tudo isso porque o protagonista do romance, Huck Finn, é uma criança que não gosta de ir à missa nem de rezar, não gosta de ficar na escola e ajuda um escravo a fugir. E por falar nigger (a palavra N, como os americanos dizem). Na época pré-guerra civil americana, Huckleberry Finn é mantido preso em uma cabana pelo seu pai bêbado. Depois de elaborar um plano brilhante e forjar sua morte, Huck engana o pai e os conhecidos e foge para o rio Mississippi, encontrando Jim, o escravo analfabeto e conhecedor de todas as superstições. O velho negro quer se livrar da sua dona, a sra. Watson, e do medo de ser leiloado. Em uma balsa feita de toras, navegando o rio Mississippi abaixo em busca da liberdade, Huck Finn narra uma odisseia onde conhece vigaristas, bandidos, trapaceiros, moças bonitas, pastores e bêbados. De forma bem humorada, Mark Twain coloca Huck Finn em problemas de navegação, trapaças bem elaborados para roubar moedas de ouro ou fugas para despistar bandidos. São situações agoniantes e muito divertidas, sendo que cada aventura é mais interessante que a anterior.

A narrativa envolve por ser inteligente e contar com as sátiras e o humor de Twain sobre a sociedade e as pessoas daquele tempo. É por isso que As aventuras de Huckleberry Finn é tão bom: o humor. Os vigaristas e as mentiras criadas por Huck me lembrou um pouco o estilo de história do Auto da Compadecida. Gostei bastante da participação que Tom Sawyer, amigo de Huck Finn, faz na trama, principalmente no final. Huck Finn é mais prático em seus planos, importando-se mais com o resultado. Já Sawyer é meio maluco, gosta de fugas épicas, longas e super complicadas, colocando eles em perigo, mesmo se a situação real não exige. A graça do final deve-se muito a Sawyer, o moleque é foda.

Apesar de ser um livro direcionado para o público infanto-juvenil, o próprio autor diz que o livro serve para adultos também, para lembra-los da infância que outrora viveram.

Voltando a questão de este livro ser considerado racista, não entendo a lógica das acusações.

Primeiro: diziam que Mark Twain era racista pois seu personagem fala nigger ou coisas como “aquele negro tinha alma de branco”. É claro que há um grande peso negativo em palavras desse tipo, não nego isso, mas neste caso, o mero uso do termo é muito pouco para provar que Twain era racista. Entretanto, eventos em suas biografias podem dar mais detalhes deste assunto. A biografia de Bigelow Paine mostra que Twain presenciou um ato horrendo contra um negro durante sua infância. Um homem branco matou o negro a pedradas, o que mexeu bastante com Twain. Isso certamente pode ter disparado alguma reflexão sobre a condição dos negros e a impunidade e os abusos do homem branco. Um fato que muitos usam para afirmar que Twain foi racista é a breve participação que ele teve no exército sulista, bem no início da guerra civil americana. Entretanto, Paine mostra que a associação ao exército não foi por motivos relacionados ao escravismo, e depois de duas semanas Twain saiu do exército. De qualquer forma, se o uso da palavra nigger caracteriza racismo no caso do livro, então Huck que é racista, não seu criador. Ou os autores são proibidos de utilizar sua criatividade e inventar personagens diferente de si mesmo?

Segundo: Quem reclama da palavra nigger joga todo o contexto histórico de 1800 direto no lixo. Era comum as pessoas utilizarem essa palavra, assim como muitas coisas hoje são comuns, mas amanhã podem deixar de ser reconhecidas e incentivadas socialmente. Ou seja, cada prática cultural deve ser estudada e considerada em seu contexto que se expressa.

Vejamos a opinião de pessoas como a Clark :

I haven’t had anybody explain to me with any amount of common sense why that word needs to be in a classroom or why it needs to be discussed,” she said. “What is there to say about it? Everybody knows the word is degrading.

Bom, ela não vê razão da palavra nigger ser explicada em sala. “O que há para dizer sobre ela? Todos sabem que a palavra é degradante”. Nem todos. Se o assunto não for bem exposto, sem a explicação sobre o contexto de Mark Twain e do romance, a expressão cai no obscurantismo e cada um acha o que quiser, criando um grande não-dito, assim como o sexo é tratado em muitas escolas atualmente. Mudar a palavra nigger parece ser conveniente para professores preguiçosos.

Rosaura Eichenberg, responsável pela tradução do romance para a L&PM Pocket, escreve em uma nota introdutória:

A palavra nigger incorporou com o passar dos anos uma carga de ódio que não tinha no tempo de Mark Twain, muito menos no tempo da narrativa. Àquela época, tratava-se apenas de uma forma comum de se referir aos negros. O próprio Mark Twain não empregava o termo, considerado de mau gosto pelas pessoas cultas (…)

Terceiro: Editar palavras de um livro por não gostarmos ou acharmos “degradante” é uma imensa burrice. Vamos editar todas as coisas que trazem lembranças duras, como a época escravista deve ser dura para muitos habitantes da terra da liberdade e lar dos bravos? É um 1984 do politicamente correto e da frescura. Ou podemos nem dar o trabalho de editarmos, mas queimarmos logo esse livros indesejados como em Fahrenheit 451.

Por fim: O que há de racismo em uma obra em que uma criança liberta um homem da escravidão? A relação entre os dois durante toda a aventura cresce, tanto que no fim Huck vê Jim como o pai que nunca teve e como seu melhor amigo. E Jim, ama seu amigo por dar a maior felicidade que ele desejava: ser livre. Huck arrisca sua reputação, a moralidade e as autoridades ao libertar o negro. Huck desenvolve uma visão de mundo durante sua viagem, sendo que a subversão torna-se humanização para o jovem.

Se Huck é racista por enfrentar a ideologia de uma cultura para salvar um ser humano, ou Twain por contar essa ótima história, o autor estaria certo em sua famosa afirmação: “Damn these human beings; if I had invented them I would go hide my head in a bag”.

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2 respostas para Mark Twain, Huck Finn e racismo

  1. Luana disse:

    Esta é uma questão delicada, e não sei como me posicionar a respeito… Imagino que um autor é humano, com defeitos que talvez o distanciem da idealização e expectativa das pessoas. E que, afinal, um autor é fruto de sua época. Terminei de ler Tom Sawyer, e muitas das passagens do livro me deixaram um pouco aflita. Não o uso da palavra nigger, mas sim a imagem que se tinha do negro. Como você bem disse, personagens podem ser racistas, o que não reflete necessariamente a posição do autor. Mas como isso será interpretado por uma criança, adentrando inexperiente no mundo da leitura?
    Dito isso, não consigo ser a favor de “higienizar” obras da literatura, mudar termos ou expressões. É uma obra de arte, afinal, e a herança de um escritor precisa ser respeitada.
    Como eu disse, é uma questão delicada.

  2. Pingback: A polícia da linguagem | Milton Ribeiro

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